MotoGP à Lupa, 2020: 2 – O Motor

Por a 8 Dezembro 2020 17:00

Continuamos a nova série de artigos técnicos de MotoGP com algumas considerações sobre os motores da classe rainha

Em termos de configuração, neste momento as opções dividem-se entre os V4 e os tetracilíndricos em linha

Motores limitados a 1000 cc, eletrónica idêntica para todos e controlada, um número limitado de motores e capacidade máxima do depósito de 22 litros a impedir excessos, foi a fórmula definida para os motores da Moto GP.

A partir daí, e desde que a mudança para as quatro tempos vingou em 2002, as configurações tem variado entre 2 e 6 cilindros, com os tetra a escolha mais universal, por oferecer um bom compromisso entre débito de potência e limite de peças móveis.

Em termos de configuração, neste momento as opções dividem-se em dois campos: os V4 da Honda, Ducati e KTM (e Aprilia, já agora), e os tetracilíndricos da Yamaha e Suzuki.

Os primeiros, com uma cambota mais pequena, já que cada chumaceira recebe duas bielas, são mais compactos e ganham rotação mais facilmente.

Por isso, são considerados mais competitivos em pistas muito rápidas como Spilberg ou Mugello, ou com modulações de velocidade severas como Jerez, e os quatro em linha da Yamaha e Suzuki, que oferecem uma entrega menos brusca, e supostamente funcionam melhor em pistas com curvas muito rápidas e fluídas, como Assen, Barcelona ou Phillip Island.

Ao fazer os V4 mais compactos, a liberdade de chassis também cresce, embora ironicamente por vezes acabem por oferecer uma superfície frontal maior, outra consideração importante para ajudar a moto a penetrar a atmosfera, quando se poderia pensar que um 4 em linha, com uma cambota muito mais larga, seria sempre maior.

Outros aspetos livres da configuração mas que mudam radicalmente o desempenho e características do motor, obrigando mesmo os pilotos a alterar o seu estilo de pilotagem de acordo, são coisas como a decalagem, ou ordem de disparo e a direção da rotação da cambota.

Vamos ver cada um separadamente e a sua influência nas características do motor.

A ordem de disparo, ou decalagem do ângulo normal da cambota, permite escolher uma configuração “screamer”, em que o motor sobe a muito altas rotações depressa mas tem uma faixa de utilização mais estreita, a regimes mais elevados, ou um “big bang”, que oferece potência muito a partir de baixo e é portanto mais fácil de utilizar na área crítica de aceleração, ou seja, à saída de curvas.

A entrega de potência linear e constante do “screamer” a partir de um certo regime torna-o mais utilizável, mais uma vez, em traçados rápidos, quando a rotação nunca cai muito.

Os Big Bang, conversamente, começam a entregar potência de forma mais brusca logo a regimes menores, mas os pulsos de potência mais próximos dão uma sessão de tração mas parecida com um bicilíndrico em V, que muitos pilotos consideram mais controlável.

Quanto à direção de rotação da cambota, se ele girar para trás, ou seja na direção inversa à rotação das rodas, as forças giroscópicas do motor e das rodas tendem a cancelar-se mutuamente, e a moto tem menos tendência para levantar a dianteira sob aceleração, aligeirando a frente.

Claro que isto pode ser em parte contrariado pela geometria, até porque inverter a direcção da cambota implica utilizar um veio a mais no motor, para inverter o movimento de novo, senão a moto andaria em marcha–atrás!

Por outro lado, na direcção convencional em que a cambota gira para a frente, na direção das rodas, o motor é mais simples e acaba por ter menos componentes a girar, aumentando a simplicidade, leveza e fiabilidade.

Ao mesmo tempo, as forças giroscópicas podem ser minimizadas reduzindo o peso não suspenso (o que, por estar para lá da suspensão, como rodas e metade dos garfos, já não influência a suspensão).

A tendência para fazer cavalos pode também ser contrariada por uma configuração pro-squat, em que a força da corrente tende a achatar a suspensão.

Na prática uma vez que decidam para uma dessas configurações, ela não vai mudar facilmente, porque obrigaria a alterar completamente todas as outras configurações da moto, suspensões, ângulo de direcção, avanço, distâncias e comprimento ou locação do pivot do braço oscilante, além da taragem das molas óleo da suspensão e tudo mais!

Apesar do regime máximo estar controlado, a liberdade de brincar com os mapas da injecção, que se ajustam quase infinitamente, permite adaptar a moto não só às preferências e estilo de cada piloto mas, através de telemetria conectada ao GPS, mudar esses mesmos mapas a cada curva de uma pista, variando de entrega violenta numa curva aberta a uma que precisa de muita saída em baixo, num cotovelo, por exemplo, mas com entrega suave para evitar derrapagem  excessiva.

A injeção pode dar conta disso e outros parâmetros da entrega de potência podem também ser programados no ECU, além de que a entrega do motor pode ainda ser exacerbada ou suavizada pelos rácios de caixa de velocidades escolhidos, e até pela combinação de corrente /cremalheira ou seja, da relação final de transmissão.

Com estes parâmetros todos à escolha compreende-se como a parte eletrónica do motor é uma parte cada vez mais importante da afinação e os dados recolhidos na pista em treinos privados, ou da época anterior se as condições meteorológicas estiverem mais ou menos idênticas, são muito importantes.
Percebe-se também a confusão inicial quando se chega a uma nova pista para a qual não existem dados prévios, como terá acontecido este ano em Portimão. Onde há uns anos a coisa dependia da sensação do punho direito de um piloto e às vezes da interpretação brilhante do seu técnico chefe na afinação, sendo duplas como Kanemoto/Biaggi ou Burgess /Rossi famosas, agora é definitivamente um trabalho de equipa, com telemetria, acerto de pneus, suspensões e motores, e claro, os gostos individuais de cada piloto, a contribuírem para que, por exemplo, duas motos da mesma equipa, idênticas em teoria, possam na verdade ser completamente diferentes em sensações e desempenho.

Assim, o acerto dos motores, que influencia a fiabilidade, sensação e desempenho, é uma parte importante deste verdadeiro laboratório de competição que são os motores de MotoGP, e o aprendido em pista, em última análise, vai reflectir-se no desempenho das motos que todos usamos no dia-a-dia.

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Paulo Araújo
Jornalista especialista de velocidade, MotoGP e SBK com mais de 36 anos de atividade, incluindo Imprensa, Radio e TV e trabalhos publicados no Reino Unido, Irlanda, Grécia, Canadá e Brasil além de Portugal
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